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MEI na berlinda Programa perdeu o foco e foi desvirtuado

Rogério Nagamine Costanzi, responsável por estudo que trata o MEI como uma bomba previdenciária, diz que o programa precisa ser reestruturado para abarcar apenas trabalhadores mais pobres e menos escolarizados

Estudo conduzido pelo economista Rogério Nagamine Costanzi, publicado recentemente no Observatório de Política Fiscal da FGV, estimou que a política pública que criou a figura jurídica do MEI (microempreendedor individual) vai gerar impacto de R$ 711 bilhões nas contas da Previdência nas próximas décadas. Em entrevista ao Diário do Comércio, o economista defende a reestruturação urgente do programa.

Diário do Comércio - Com base em estudo conduzido pelo senhor, quais as principais questões relacionadas à política pública que criou o MEI que afetam as contas da Previdência?

Rogério Nagamine Costanzi - O MEI é um programa muito desequilibrado do ponto de vista do valor das contribuições e dos benefícios recebidos. Considerando o valor de 15 anos de contribuição do MEI, de 5% do salário mínimo, sem capitalizar as contribuições, geraria cerca de R$ 13,7 mil. Já o valor esperado, apenas de aposentadoria de uma mulher, a partir dos 62 anos, é, atualmente, R$ 434 mil. Esses valores não consideram a capitalização das contribuições ou não trazem os dados a valor presente, mas, de qualquer forma, o MEI recebe muito mais do que efetivamente contribui para o sistema. A sociedade precisa pagar a diferença desse subsídio que o MEI recebe.

Outro grave problema é a substituição de trabalhadores com carteira de trabalho assinada por MEIs. É uma migração que não gera ganho em termos de cobertura previdenciária, ocasiona perda de direitos trabalhistas e fragiliza o financiamento da Previdência Social. Quase 17 anos depois da criação do MEI, não houve ampliação estrutural da cobertura previdenciária no país, apesar de haver 16 milhões de trabalhadores inscritos no programa. Essa política não serviu para reduzir de forma estrutural a informalidade no Brasil, mas, ao permitir uma pseudopejotização, agravou ainda mais a tendência de precarização do mercado de trabalho brasileiro em um contexto de plataformas digitais.

O MEI é uma bomba previdenciária que vai explodir sobre as novas gerações. O programa foi desvirtuado e precisa ser reestruturado de forma urgente. O impacto estimado do MEI, nas próximas décadas, é de R$ 711 bilhões, valor que continua crescendo com o incremento das inscrições, considerando apenas despesa com aposentadoria por idade.

O programa precisa ser reestruturado para garantir foco apenas nos 20% mais pobres e eliminar o risco de substituição de emprego com carteira de trabalho assinada por MEI.

Para estimar o déficit na Previdência, imagino que você tenha se baseado em dados, como, por exemplo, o número de MEIs que já cumpriram o prazo de carência e hoje recebem o valor de um salário mínimo. O estudo avança nesse sentido?

Costanzi - Essa questão deve ser encaminhada ao Ministério da Previdência Social e ao INSS, mas é possível. Mas há o problema de que muitos trabalhadores têm tempo como MEI e também como outro tipo de segurado.

Um dos problemas apontados no estudo é a perda de foco da política pública. Sabe-se que há casos de aposentados e trabalhadores CLT que se inscreveram no programa com o desejo de complementar a renda, e isso não é proibido pela legislação. Em tese, não geram prejuízos às contas da Previdência. Como você analisa essa questão?

Costanzi - Há relato de casos de servidores públicos que se inscreveram como MEI. O público deveria ser de pessoas que não contam com proteção social. No caso do servidor, pode-se gerar direito à aposentadoria no INSS, causando prejuízo à Previdência. Mas mesmo no caso de trabalhadores CLT que complementam a renda, a contribuição como MEI será considerada no cálculo do benefício e, portanto, aumentar o valor da aposentadoria sem a devida contribuição também gera prejuízo para a Previdência.

De qualquer forma, o MEI deveria ser focado em trabalhadores de baixa renda e com pouca escolaridade, mas ao longo do tempo tem crescido a participação de trabalhadores com curso superior completo, mesmo pós-graduação, que não eram o público-alvo do programa quando começou. O programa foi desvirtuado e precisa ser reestruturado de forma urgente.

Um dos problemas crônicos em relação ao MEI é a alta taxa de inadimplência. Quem não contribui, não tem direito à aposentadoria por meio desse regime. O estudo avança nessa questão?

Costanzi - Desde o começo do programa, sempre houve elevado nível de inadimplência. Há diversas razões que podem explicar a inadimplência. Em primeiro lugar, há o caso de pessoas que se inscreveram no MEI para obter outro tipo de benefício, como ter desconto em plano de saúde ou comprar carro com desconto, por ter CNPJ, ou estrangeiros que precisam do MEI para emitir nota fiscal ou outras situações.

Há esses tipos de desvios, mas há tanto aqueles que se inscreveram e nunca contribuíram, como os que começaram a contribuir e depois pararam, mas não dão baixa. Essa interrupção da contribuição pode decorrer de diversos motivos, como mortalidade da empresa formal, migração ou retorno para carteira de trabalho assinada. Há também pouco incentivo à migração para micro ou pequena empresa, tendo em vista que há grande aumento da carga tributária neste movimento, algo que tende a incentivar o subfaturamento para garantir o maior incentivo tributário.

Um cruzamento do IBGE apontou que cerca de 14% dos MEIs seriam beneficiários do programa Bolsa Família, ou seja, 86% não seriam beneficiários do referido programa. Essa é a parte bem focalizada do programa, mas que cria preocupação em relação à inadimplência. Isso porque é possível que parte relevante desse grupo esteja entre os inadimplentes, o que significa que não apenas não poderiam obter cobertura previdenciária, como ainda podem estar se endividando junto à Receita Federal, pois a legislação do programa exige contribuição mensal de 5% do salário mínimo.

Recentemente, a Contabilizei divulgou estudo baseado em dados da Receita Federal que apontam que mais de 570 mil MEIs ultrapassaram o teto de faturamento na passagem de 2023 para 2024 e estariam, portanto, aptos para migrar para a condição de microempresa do Simples. Esses dados não contradizem um dos pontos do estudo, que sugere que essa política pública tende a incentivar o subfaturamento?

Costanzi - O incentivo ao subfaturamento existe, pois a mudança na carga tributária de MEI para microempresa é elevada. O desenho das políticas públicas precisa ser feito levando em consideração os incentivos que são gerados. Ademais, dessas 570 mil que ultrapassaram o faturamento, quantas viraram microempresa? Quantas migraram? Parece um dado muito superficial que precisa ser aprofundado, bem como o fato de os 570 mil corresponderem a cerca de 3% do total de inscritos.

Tramita no Congresso Nacional projeto que aumenta o teto de faturamento do MEI dos atuais R$ 81 mil para R$ 130 mil e permite a contratação de até dois funcionários. Há alguma projeção de como ficará a conta da Previdência caso seja aprovado?

Costanzi - O MEI deveria ser reestruturado de forma urgente. Essas medidas que ampliam o programa apenas irão agravar ainda mais as distorções e elevar ainda mais o déficit que o MEI gera nas contas da Previdência Social, já pressionada pelo rápido e intenso envelhecimento populacional.

Já há avaliação por parte do governo federal sobre os problemas do programa. Sobre impacto, é difícil estimar no momento, mas certamente as distorções de má focalização e maior desequilíbrio atuarial e financeiro no RGPS certamente vão aumentar.

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